"A
espuma só parece ser fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós
não sabemos nada...
Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?"
Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?"
Fernando Pessoa, O marinheiro
O livro fio, fenda, falésia nasceu de seis mãos, encontros dos corpos de Érica Zíngano, Renata Huber e Roberta Ferraz, escrevendo pelo desejo de mistura, para não delimitar ou demarcar onde acaba um corpo (de escrita) e começa um outro corpo (se escrevendo). Essas fronteiras tornam-se borros, e pensar o borro como borrão traz a imagem de um poema ainda inacabado, mas sempre em estado de escrita, no cerne do processo, no fluxo da experiência. A experiência como prática de partilha aflora no imaginário pelo teatro, porque o teatro é o lugar onde se dá a ação, o acionar e o reacionar, e por isso a cena de escrita do livro monta-se a partir de um texto-paradigma de Fernando Pessoa, O Marinheiro (1914). Além disso, também há uma prática surrealista rememorada pela escrita dos cadavres exquis, que agregam as várias mãos num só poema criado coletivamente, abrindo o poema para o nós. Outro eixo que movimentou a feitura do livro foram os deslocamentos: viagens em conjunto empreendidas para Ilha Bela e Fortaleza, onde a vivência configurou-se como um fazer-estar entre lugares, reafirmando a não-fixação do poema, enquanto o livro elaborava-se no curso do tempo. Agora, o livro impresso, junção de três cadernos giráveis, uma paisagem que se desdobra para o olhar do outro, afirma a alteridade como uma possibilidade de abertura do eu e da inscrição do nós, onde assinar os poemas torna-se um capricho absolutamente desnecessário - senão como indício, uma deixa que convida o leitor para atravessar as páginas procurando as marcas já desfeitas de uma noção de identidade.
ritos fúnebres
érica zíngano
charneca
pode ser o nome do lugar
carniça
pode ser a imagem tomada de empréstimo
chapinhar
pode ser o verbo usado para escrever
chama
pode ser o método de aproximação
chão
pode ser o caminho de areia movediça
culpa
pode ser o resquício escondido nas palavras
chuva
pode ser o intervalo entre um verso e outro
chave
pode ser o motivo para guardar um segredo
caranguejo
pode ser quem dá com a língua nos dentes
corda
pode ser o parâmetro para esticar a escrita
cavalo
pode ser coruja, pássaro, prenúncio da noite
como
pode ser a tentação da metáfora
mas, de qualquer modo,
não há salvação
o que sonhamos
renata huber
O que sonhamos está escrito e repousa na memória. O livro, o mundo, cada sílaba e cada imagem pode agora despertar. No coração de uma noite, na intimidade movediça dos amantes já dispersos, a música será leve. Uma concha ressoando, uma árvore, um fio. Um fio e saberemos as armadilhas da ternura, a tessitura singular e nossas vozes ao encontro. Em cada boca a paisagem que tecemos e habitamos, as fendas desferidas assediando os oráculos.
3 carpas
roberta ferraz
bordejar fio à pérola
na exata fronte lupanar
ladrilho d'ouro, saia fulgurante
negro é o encaixe
descemos as contas até o enigma
a garganta em feixe amarelo
escorre entre os seis seios
essa metrópole tonta
e viscosa
e endereçada às mortes
esse disco esse um a um
olhos do gato saliente
um a um no fio da vértebra
sozinhas
para a noite
Um comentário:
três carpas que não se reduzem a Um mas se rodeiam em uns-a-uns,
grande coreografia autoral, embaixo de reflexos líquidos.
olho-de-gato, coisa mais noturna e radiante não existe.
lindo poema, talvez sobre estas 3 carpas de grandes escarpas
da nossa poesia, mas sempre mais que isso.
Leo
leitor fã
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