fio, fenda, falésia
três saudações
1.
comentário sobre a decisão –
comentário sobre a decisão –
quando a estiagem faz remanso
no caderno vermelho da praia
eu não escrevi Kharkov
onde eu leio cacos Ignat
você vivia voando – um voo rasteiro
e vespertino quando duas araras
pretas completamente pretas
não sei se de luto ou vestidas
de fantasia de viúva negra
entraram no quarto para chocar ovos
no ninho bem no alto das cortinas
como se ali fosse falésia
bem no alto perto do branco
– chocar o tempo com o tempo
cada vez mais quente e o calor
aumentando bem no alto
da falésia uma ventania
de fazer doer os ouvidos
um zumbido alto aumentando
na parede ao fundo um alfabeto
escrito sem hieróglifos
apenas sinais coloridos explicando
como aprender a falar a escrever
no caderno vermelho da praia
onde caminhamos tantos anos
sem precisar justificar para nós
nossas escolhas mais afetivas
a língua enfiada por entre
nossos dentes de caranguejo
nos mostrando n combinações
possíveis para dizer o mesmo
mas nem sempre igual espelho
difusão com marca d'água
ex-libris sobre o olho para ver de perto
cada vez mais perto com lupa de cristal
e sol nossa imprecisão que ultrapassa
a pg. 440 e o número 43 não chega
a cortar as linhas que tentamos
equilibrar com nossos dedos
uma varinha de condão ou uma espada
de esgrima para sustentar os pratos
as páginas que não param de rodar
eu carrego tudo na ponta dos pés
gravetos chumaço de papel
e nuvem
para fazer fogueira se precisar
álcool evaporando rápido espalhando
no acampamento na primeira noite
apenas na primeira delas
uma coletânea de indicações
que interrompem o fluxo insistindo
no corpo na altivez do rosto
uma concha desenhada
com carvão vegetal
guardada perto da areia
quando pouco ou quase nada
de nós apenas os pés
nossas intermitências
terminavam por fechar
o buraco aberto onde cavamos
procurando o livro entre as pedras
no museu um jogo de cores para cada dia
da semana reescrevendo um amor a três
e o último poema
sempre um poema de amor
em que revelo meu nome uma espécie de flor
um rabo de sereia para um vestido
de noite ao me voltar para as araras
e o ninho segue longe
disperso no meio do mar
sem deixar de falar na morte
eu não escrevi Kharkov
onde eu leio cacos Ignat
você vivia voando – um voo rasteiro
e vespertino quando duas araras
pretas completamente pretas
não sei se de luto ou vestidas
de fantasia de viúva negra
entraram no quarto para chocar ovos
no ninho bem no alto das cortinas
como se ali fosse falésia
bem no alto perto do branco
– chocar o tempo com o tempo
cada vez mais quente e o calor
aumentando bem no alto
da falésia uma ventania
de fazer doer os ouvidos
um zumbido alto aumentando
na parede ao fundo um alfabeto
escrito sem hieróglifos
apenas sinais coloridos explicando
como aprender a falar a escrever
no caderno vermelho da praia
onde caminhamos tantos anos
sem precisar justificar para nós
nossas escolhas mais afetivas
a língua enfiada por entre
nossos dentes de caranguejo
nos mostrando n combinações
possíveis para dizer o mesmo
mas nem sempre igual espelho
difusão com marca d'água
ex-libris sobre o olho para ver de perto
cada vez mais perto com lupa de cristal
e sol nossa imprecisão que ultrapassa
a pg. 440 e o número 43 não chega
a cortar as linhas que tentamos
equilibrar com nossos dedos
uma varinha de condão ou uma espada
de esgrima para sustentar os pratos
as páginas que não param de rodar
eu carrego tudo na ponta dos pés
gravetos chumaço de papel
e nuvem
para fazer fogueira se precisar
álcool evaporando rápido espalhando
no acampamento na primeira noite
apenas na primeira delas
uma coletânea de indicações
que interrompem o fluxo insistindo
no corpo na altivez do rosto
uma concha desenhada
com carvão vegetal
guardada perto da areia
quando pouco ou quase nada
de nós apenas os pés
nossas intermitências
terminavam por fechar
o buraco aberto onde cavamos
procurando o livro entre as pedras
no museu um jogo de cores para cada dia
da semana reescrevendo um amor a três
e o último poema
sempre um poema de amor
em que revelo meu nome uma espécie de flor
um rabo de sereia para um vestido
de noite ao me voltar para as araras
e o ninho segue longe
disperso no meio do mar
sem deixar de falar na morte
Érica Zíngano
2.
Este livro, lugar acolhedor de nossas diferenças, reflete o anseio por novas formas de convívio. Mais que publicar nossos textos em conjunto, quisemos, juntas, vivenciar intensamente cada senda do processo, criar um contexto em que as leituras e os diálogos fizessem parte-afetiva da escritura em questão. Isto tinha um risco, certamente, e apagar nossos nomes era correr este risco, baixar a guarda e entrar no jogo da autoria clandestina. Assim escrevemos, desertando a sensatez dos gêneros e abrindo umas fendas nas fronteiras entre nós. As fendas, no livro, se tornaram visíveis, são entre-textos que escolhemos para guiar o leitor, e sugerir, com isso, o feminino estando ali, nas artimanhas e ardis do que se abre para o outro.
Uma fenda, um rosto. É como se tudo em nós pedisse uma entrega e por dentro nos dissesse, estranhamente, cuidado: mais um passo e eu me armo com a irreverência dos espelhos. Entre velar e desvelar, neste jogo poético que é sempre dialógico, nascem as vozes e as palavras ganham corpo. De escrita, um corpo. Nosso corpo, o livro. O livro e três mulheres cortejando o leitor, e o vislumbre do que eu chamo de "molecagem poética e alquimia dos encontros".
Antes e depois e sempre o amor, com suas ilhas e fortalezas
horas densas e difíceis
depois leves e densas e convividas e solitárias
suas áreas arenas
seus espelhos sem pauta
cada olhar
um mergulho
lembrado como um flash
e assim renascemos
a caminho de outro tempo
descarrilhadas, vadias
outras
filhas da orfandade e do século vinte e um
noivas do pasmo cortejando o sol
e deleitando a lua em outras tantas mulheres
a dizer:
caminhar
abrir
plantar
rodear de raízes os jardins abandonados
Renata Huber
3.
UM, versinhos à moda de mulher rendeira
fio uma fenda na falésia
fundo uma falésia no fio
falo, falo do fundo do sim
falo, falo do fio sem fim
fundo uma falésia no fio
falo, falo do fundo do sim
falo, falo do fio sem fim
DOIS, Como é esse corpo a três, essa mão tripartida e esse ménage na língua, na folha, alheando os nomes de suas porosidades reconhecíveis, de seus cheiros, de seus hábitos? Porque a língua com suas papilas gustativas, com suas pupilas e seus pupilos eleitos, a língua então é cortada fora, desmembrada e posta, para que se veja e opere nela um feito fatiado – fica interessante porque parece que nessa amputação a gente talvez possa ver como (a) parece a nossa língua em sua presença – pois é: quem é que tem o hábito de observar a própria língua, eu digo, de escová-la tão poeticamente, de pesquisar sua coloração, sua espessura? Assim, nós 3, confiadas no elo de uma amizade fortíssima, começamos a fazer “os experimentos”, afiados, de corte nas línguas, próprias e alheias, perdendo aquela noção de referência, aquele ponto dissimulado de origem, apagando esse apego genealógico.
Eu descobri uma fotografia nesses cortes: o risco da língua, assim como os traços da mão- labirinto, forma uma cena rítmica: do fio à fenda e dessa à falésia, como uma ecocardiografia, sabe? Aquele riscado dos batimentos cardíacos: exatamente. O desenho do pulso cardíaco, a lavagem das doenças do coração. Cordas de eco. Fios puxando fendas alavancando paisagens: os batimentos cardíacos. Os riscos todos. Era assim: por exemplo: o exercício de ofertar paisagens. Eu abro uma folha em branco e vasculho/invento uma paisagem, paisagem que talvez já tenha tomado contornos mais duráveis na minha, oh, subjetividade topográfica. Dou e dôo a quem quiser. Esta paisagem. Que será cirurgicamente rasurada. Até aos poucos ir perdendo... totalmente... seu traçado primeiro. Aos poucos não resta nada. Nada, apenas o vestígio de seu desmembramento. Onda no batente, piar (azul): um suspiro e aos poucos solta-se à visita do mar.
TRÊS, rocas, belasadormecidas, gitanas maltrapilhas – gente que não convém, eu não aconselharia, era o que o açude-de-cancelas queria grudar nas três carpideiras (mulher mercenária que vive de acompanhar defunto? mulher lamuriosa que recebe pra prantear?) que não eram marinheiras mas erram o Marinheiro.
Quem sois? o cadáver foi o modo mais sincero de pôr as mãos – licenciosidade anatômica, permissiva corrupção, coisa cheia de senha sanha
e engenho curiosos –
talvez, como sonhar
e quem está desperto?
quem é que monta/desmonta essa engrenagem toda? essa hidrelétrica assumida? eu não aconselharia (e quem é que pede conselhos?), grita do horário nobre um sujeito assujeitado, de cabos elétricos e futuro, e as ruas parecem ouvir, acostumadas... a só perguntar timidamente: e nós, como seguimos, continuamos a amar?
Quem sois? o cadáver foi o modo mais sincero de pôr as mãos – licenciosidade anatômica, permissiva corrupção, coisa cheia de senha sanha
e engenho curiosos –
talvez, como sonhar
e quem está desperto?
quem é que monta/desmonta essa engrenagem toda? essa hidrelétrica assumida? eu não aconselharia (e quem é que pede conselhos?), grita do horário nobre um sujeito assujeitado, de cabos elétricos e futuro, e as ruas parecem ouvir, acostumadas... a só perguntar timidamente: e nós, como seguimos, continuamos a amar?
Roberta Ferraz
textos iniciais fio, fenda, falésia
1 | texto apresentado ao ProAc
Rompendo com os moldes tradicionais de produção textual, o projeto para publicação em livro Fio, Fenda, Falésia surgiu a partir do grupo de estudos que mantenho, há dois anos, com Érica Zíngano e Renata Huber. Nossos encontros quinzenais iniciaram-se nas dependências da Faculdade de Letras da USP e atualmente são realizados no Espaço Maranus, espaço cultural inaugurado e coordenado por mim. É importante situar, também, a relevância de meu envolvimento com um outro grupo de estudo, o NELLPE – Núcleo de Estudos de Literaturas de Língua Portuguesa e Ética. O NELLPE é um grupo coordenado pela Prof. Dra. Lilian Jacoto, do DLCV da USP, que tem como foco de pesquisa a relação entre literatura, ética e alteridade.
Aproveitando as discussões trazidas do NELLPE, e reinserindo-as nas escolhas de outros textos literários, o grupo formado por mim, Érica e Renata reorganizou novos temas de trabalho, leitura e discussão de textos, visando o exercício criativo com a palavra. Foi interessante acompanhar o desenrolar dos objetivos inicialmente ali engendrados: o que começava como um procedimento crítico e discursivo foi cada vez mais se alicerçando sobre a escritura poética criativa, ou seja, fomos descobrindo que, inevitavelmente, nosso espaço de encontro para leituras abria um outro espaço, paralelo e interligado, em cujo cerne estava a experiência da correspondência poética. Assim, esse exercício de ler o texto literário como um dispositor, por excelência, da prática de olhar o OUTRO e de, através desse olhar, rever nossas próprias posturas identitárias, acabou por formar nossa proposta de criação do projeto Fio, Fenda, Falésia.
No curso dos encontros, escolhemos, como um eixo, um fio condutor possível, dois textos de Fernando Pessoa: A Floresta do Alheamento e O Marinheiro. Esses textos tornaram-se fundamentais na elaboração prática e conceitual desse projeto de livro, porque neles encontramos um primeiro espelhamento delineador do que estávamos fazendo juntas: no drama O Marinheiro vemos três personagens femininas, assim como n’A Floresta do Alheamento podemos desdobrar o personagem principal em outros três, um duplo dele mesmo e uma mulher que acompanharia esse duplo. Lendo a três vozes dos textos, vislumbramos uma escrita em conjunto, a partir de Pessoa, apontando para a questão do desdobramento do sujeito, o que nos levou a pensar também no desdobramento do autor. Diferentemente da proposta heteronímica, também levada ao cabo pelo poeta citado, em cuja estética do ‘drama em gente’ lemos um desdobrar dramático em autores fictícios, pensamos, nós três, em experimentar um desdobrar textual em que a centralidade das autorias individuais confluíssem juntas, sem qualquer separação prévia, deixando como marca das particularidades de cada uma apenas rastros de voz, em que, talvez, um leitor atento, pudesse ir aos poucos puxando os fios, e assim, ensaiar uma demarcação das identidades.
Descobrimos que essa proposta carrega uma reflexão bastante íntima do que podemos chamar, com muito cuidado, de uma prática feminina de escrita, e quem sabe, uma prática feminina de habitar o mundo. Desse pressuposto, um mar de discussões nos veio à tona, desde a problemática dos gêneros até psicologias e leituras de caráter impressionistas. E, como não poderia deixar de ser, esse material confrontador acabou por fazer-se um dos núcleos da própria escritura poética que realizamos, nesse cruzamento entre reflexão, leitura crítica, observações e partilhas do cotidiano. Assim, rasurando o projeto textual centrado em uma autoria única, o projeto de publicação Fio, Fenda, Falésia, propõe uma autoria a três mãos, a seis mãos, em que os nomes são rasurados pela reunião de nossos três lugares diferenciados.
Esse elo de três mulheres em escrita vem perpassado, obviamente, pelo universo literário, de onde cada uma trouxe seu universo particular: em mim, o ressoar do desejo de uma escrita feminina, trabalho poético que já realizo há algum tempo em particular, e que agora alcança uma força concreta com o pôr em prática esse projeto, em que três mulheres embaralham suas vozes num jogo de véus e revelações, relembrando e transformando aquele antigo espaço de clausura reservado à prática da escrita por mulheres: a correspondência. A correspondência guardava os segredos dos cotidianos de mulheres cerceadas em suas moradias, e era ali, no enquadramento da folha em branco, que alguma liberdade era possível, num selo endereçado a outra pessoa. Novamente, a questão da alteridade parece estar, desde o início, vinculada à produção escrita das mulheres. Já o universo particular de Érica Zíngano trouxe a fricção das artes visuais com a literatura, numa prática autoral que se tem marcado pelo seu caráter rizomático, sua estrutura fragmentária e performática, ou seja, Érica apresenta-nos um trabalho com técnicas e conceitos muito importantes para se pensar um novo olhar ao mundo, uma nova concepção estética, em afinidade com nosso tempo e espaço marcados pela virtualidade e pela simultaneidade. A Renata Huber, por sua vez, trouxe a força da palavra oral, dos estudos dos cancioneiros nordestinos, e também de seu interesse e dedicação à escrita posta em cena, à encenação da palavra, trabalho resultante de sua pesquisa sobre a ópera das pedras, em que o universo simbólico da ‘pedra’ atualiza no corpo e na palavra o aprendizado do silencio. Esses três lugares trazem ao projeto perspectivas diferentes, uma vontade de unir o múltiplo, em cujo cerne está o apelo de um encontro nas diversidades, nos olhares variados, nas diferentes maneiras de ver e experimentar a escrita, onde o limite de uma escritura transborda e se estica na escrita do outro. Do labirinto de sermos três, puxamos fios que percorrem caminhos distintos, e a espacialidade da troca se vai desenhando, através de cruzamentos e solidões. Daí as fendas, no interior do labirinto, fendas como buracos, entradas, orifícios, em que os fios iniciais que conduz cada uma acaba por nos levar à outra. Nesse despenhadeiro do outro, criamos nosso elo, nosso corpo novo, feito de palavras. É o elo maravilhoso da escrita, que percorrendo esse Fio, Fenda, Falésia vai dando contornos, formas, cores e sentidos ao texto.
O livro funciona então como um acolhimento que alarga a possibilidade de descentramento de um EU autoral absoluto e homogêneo, sugerindo a idéia da superfície de contato real com a leitura como uma fenda, que abre contínuos fios ao exercício de nossas diferenças, assim como de nossa existência conjunta, em comunidade, em situação de encontro e troca. Adentrando essa paisagem de escrita pelo lugar do Feminino, portanto a Fenda, resolvemos nos abrir para uma escrita em processo coletivo – o livro como um devir outro, outrar-se, conforme diria o poeta Pessoa, pela escrita do outro, que nos chama como um convite, e nos provoca no interior de nossa paisagem.
Um projeto de escrita feito a seis mãos que se desdobra em um livro concebido como um objeto (vide anexo / design gráfico). Em seis partes, o livro se reparte em pedaços pra que sua forma espelhe seu gesto de escrita: o fio transforma-se numa linha imaginárias perpassando cada pedaço, a fenda, uma ruptura entre cada uma das partes e a falésia como o desenho de um geografia recortada que o livro-objeto desenha no espaço.
Érica Zíngano, Renata Huber e Roberta Ferraz
2 |
como é esse corpo a três, essa mão tripartida e esse ménage na língua, na folha, alheando os nomes de suas porosidades reconhecíveis, de seus cheiros, de seus hábitos? porque a língua com suas papilas gustativas, com suas pupilas e seus pupilos eleitos, a língua então é cortada fora, desmembrada e posta, para que se veja, mudo, e opere então, nesse objeto não mais interno, um feito exteriorizado, diferenciado – é interessante porque parece que nessa morte, nessa amputação, a gente realmente veja, talvez pela 1ª vez, como parece ser a nossa língua em seu estado presente. nomes de suas porosidades
quem é que tem o hábito de observar a própria língua, eu digo, de escová-la, de pesquisar sua coloração, sua espessura?
assim, nós 3, confiadas no elo de uma amizade fortíssima que nos ampara, começamos a fazer experimentos – não sem risco – de corte nas línguas, próprias e alheias, perdendo uma noção de referência, de ponto de origem, apagando essa genealogia.
foi isso o que se deu, até então, de 2 maneiras distintas, através de principalmente 2 práticas: uma inspirada numa tradição que todas nós saboreamos – o cadáver esquisito, dos surrealistas – e outra também híbrida, inspirada num apelo arcaico de transmutação (vem aí a química, a alquimia... a.... psicanálise), esta menos lúdica mas ambas ferinamente fortes. era assim: por exemplo: o exercício de ofertar paisagens. eu abro uma folha em branco e vasculho/invento uma paisagem, paisagem que talvez já tenha tomado contornos mais duráveis na minha subjetividade ‘topográfica’ (citando a bela fala da Prof. Ida Alves, da UFF). dou e dôo a quem quiser esta paisagem, que será cirurgicamente rasurada, até aos poucos ir perdendo totalmente seu traçado primeiro, aos poucos não resta nada, apenas a memória de seu desmembramento, que levou aquela paisagem à outra ou outras radicalmente outras.
esses exercícios são cruéis, muitas vezes. porque a gente quer, sem saber que quer, ver resquícios de nossa subjetividade na idéia de eternidade que a idéia de livro projeta. não: ali a gente projetou esse desafio de levar as paisagens próprias, impossivelmente próprias, até as suas fendas, encarando no corpo o que pode ser o despossuir os territórios dos nossos afetos, o que pode ser o exilar-se e transmudar-se na partilha e no encontro. giramos a roda, as paisagens se misturam, se sobrepõem, para, num instante de acaso e de estranhamento, parar momentaneamente de girar, tomando forma de um outro texto, fendido, estrangeiro.
talvez o ‘fio’ do nome tenha relação, já que o fio conduz, tece, com esse intento sem perspectiva de resultado (nós ainda estamos no começo, não sabemos o que virá), mas com experimentos mais detalhados, como se fosse mesmo necessário uma espécie de micro-método, um fio, para o dilaceramento, às vezes tão resistente do sujeito poético, em relação a outros sujeitos poéticos. sujeitar-se a um lirismo que se quer despido das cristalizações pessoais, chegar até a borda da loucura disso, seja talvez uma empresa que possa resultar menos interessante que seu sonho... mas se o que se busca está na pauta da fragilidade... lembramos que o fio condutor é um fio que se parte com muita facilidade... como a anêmona.
se parte em fenda, e quem sabe ainda, depois dessa viagem, não chegaremos, por meio da rasura, às falésias, a alguma contemplação do mar? Temos um roteiro imaginado, sonhado, dos mecanismos e exercícios, de encenações para a palavra. mas não temos o barco, ou ainda, o barco que temos são essas três línguas remendadas, batidas no liquidificador, transformadas numa pasta de sangue e de aromas... não foram poucas as ocasiões em que os olhos foram inundados e tudo no corpo e na página esteve à deriva...
voltando, revelando: não à toa, retomando o tema do simpósio, as ‘travessias Brasil-Portugal’, tudo isso começou certa noite, quando nós 3 estávamos no Espaço Maranus, lendo o drama extático...O Marinheiro.
ASSIM:
Queremos nos misturar, queremos ansiosamente lembrar como se chega à pele uma da outra, na própria pele da outra, queremos essas mãos sujas de tinta, essas mãos em papel, em papéis laqueados, como uma dobradura etrusca guardada cadente no complicado arremedo das veias no corpo de uma mulher
Dizemos com nossas palavras que as vestimentas são cambiáveis, que os olhares são amorosos e que as pernas podem muito bem ajudar as pernas na escalada, não escalada de espaço algum: escalada de paisagem, essa filigrana que tudo abarca e acolhe e esse sexo
Que tudo justifica e que aqui nós rejuntamos, passamos manteiga, escrevemos de mãos dadas com outros pórticos, vislumbramos um mar cujas ondas são línguas, línguas de homens de mulheres de crianças de anjos de árvores de gatos de sapos de rãs de coelhos de ervas de caldeiras de passados de avenidas de São Paulo
Esta é uma cidade e aqui nos encontramos cercadas por pinheirais,
aqui nesta cidade vagueamos nossos corpos por linhas não enxutas, atravessamentos sensoriais, cheiros, copas, florescimentos, aqui nesta cidade, circulamos as tardes, lemos, ouvimos a voz chamar e interrompemos a lógica verticalizada dos edifícios colocando os pés e os troncos nas calçadas, deitando nas ruas, deixando o luar
É nesta cidade que nossos corpos se emprestam, é aqui e agora uma inflexão de mil e uma existências que são mais existentes porque damos a elas a impressão da língua, damos o colo da língua, damos a língua ao regaço e assim a língua viaja pluri-ferada ferina com suas asas de páginas
Para o grande momento do contágio
Nestes teus olhos / (molho) / Nesta tua própria cama
Roberta Ferraz
3 |
I
As coisas começariam como? Um lance, um mormaço, um encontro entre três mulheres que escrevem? Um acaso.
Uma partida de dados? Misteriosíssima ocorrência, vento sugestivo soprando encontros? Vento grosso nas janelas quando bulimos as páginas de livros, quando súbita foice de vidro da janela estanca, e então: a página cede, e pára: e é aquela, exatamente aquela, e nós a pegamos no colo.
O tempo e o mistério abriram a página n’O Marinheiro, e não à toa, ou maravilhosamente à toa, éramos três.
A cena começa a se desdobrar, a esticar o gesto num elo já de seis. Essas três ali videntes em nós, esticadas – elas parecem velar um cadáver, o tempo, uma espuma que há de passar e não passa – elas não sabem. Nós também não sabemos – velamos – esperamos – e somos três.
A princípio, e depois quantas? Quando começamos a tessitura da página, quantas? Lendo-as e levando-as na aventura que agora aqui se dá, conosco, encorpada.
II
Jamais estudamos psicanálise, psicologias ou outras ferramentas ‘psi’ com critério, ou mesmo sem critério. Esta atestação inicial me vem, e deixo pra quem queira o trabalho intuído de desdobrar esta ‘frase’ em ‘desculpa’ ou ‘justificativa’, ou várias delas, conforme cada desejo de lê-la.
Um pouco de mitologia, muita coisa de pedra, muita coisa de linguagem. E às escuras, no encantamento meio ébrio dos encontros ‘plenos’ de sentido – e por isso, indecifráveis até para nós – veio vindo isso: FIO, FENDA, FALÉSIA.
De início, não veio o FIO. Veio LÍRIO, a flor branca virginal, flor que espargiu em leite lácteo sobre o céu sonoro que nos protege, durante a longa insônia compartilhada de nossas buscas. LÍRIO, FENDA, FALÉSIA – diversos enigmas cavavam já essa seqüencia que ia da flor ao abismo. Com um golpe de ‘F’, talvez vislumbradas pelo apelo de uma letra que rasga as asas da faca, também na imagem do objeto, assim: veio o FIO. Da virgem à mulher astuta que planeja pelo cotidiano o desenrolar vivo de um labirinto. A metáfora é vasta e gasta: a metáfora habita – é tempo.
Com o par FIO, FENDA vem também os instrumentos, os utensílios, as ferramentas de escavar e escovar esses corpos, puxando e deflorando as veias: abrindo o armário: expondo com vigor – outras vezes, ainda com medo, ou ainda, sem expor (dentro de véus). FIO é DIZER. Encontrar a linha que não há das correspondências, inventar o real, até haver. Essa artimanha sagrada praticada por mulheres – sim: viajar os mundos, os corpos – pela palavra.
Somos três. Absolutamente ímpares. Podíamos ser quatro, cinco, nove. Mas somos três – assim nasceu espontâneo o sentido do encontro, a ternura.
___________________________
idéia: grafias da paisagem, que passam pelo encontro de três mulheres, três – trio, trindade, trinca – que, no encontro, doam, contagiam, espraiam um reservatório de imagens, de vivencias em estâncias – ou seja, paisagens – em que as três interseccionam, no encontro, e habitam;
eu trago uma paisagem, uma paisagem em leque, composta por diversos adubos de imagens, e assim, meu corpo – cave desse leque – aponta para uma linha – grafia desse corpo – que se joga ao mundo como paisagem – intersecção: escrita
há essa trindade espacial – corpo, paisagem, escrita – em cada uma de nós, que, dando as mãos, os seis braços, abrem o lírio, leque, de outra confluência do 3 que passa então a ser 3x3 = 9: corpos, paisagens, escritas – 9 que é número último no sistema decimal, número último que aponta para todas as multiplicações, para um infinito...
basta então três mulheres se encontrarem para um vislumbre do infinito?
o três é então ainda a sementeira da criação, pensando nas mais diversas narrativas míticas da formação do homem e do cosmos?
e o que é esse encontro HOJE neste espaço AQUI de 3 mulheres que somos NÓS? é o encontro um lampejo de uma busca de ultrapassarmos nossos corpos, paisagens e escritas? é o encontro uma rota de sobreposição e confluência do que carregamos no nosso silêncio unitário? e sendo assim, por que nós, por que nós e não outras de nós? que imagem é essa que nos atravessa? quais sentidos?
penso agora nas forças, vértices, linhas de tensão que eu posso trazer – penso agora em dedilhar meu corpo AQUI HOJE E AGORA, minhas paisagens, minhas grafias: penso em dá-las, doá-las a vocês pra que a navegação da troca surpreenda os cálices cristalizados, esse hábito de sermos nós mesmas –
trago:
- as escarpas abruptas – essas falésias – como corpo-desejo em contato de terra e água: como ser mulher na situação falésia? Água mole em pedra dura tanto bate até que fura? Por que é que eu resisto e empino as pedras de minha degradação ao sol, sendo tanto a água que desgasta como a montanha que não cede?
Toda a urgência de dizer o feminino, dizer mais, mais do que já foi dito, não numa constância de
briga política, num apelo de direitos, numa facção de sair às ruas... não isso: dizer a mulher, a virgem, o corpo que tocado guarda uma gruta: sabendo ou tentando saber a hora de não dizer, a hora cálida do segredo, mas escavar esse corpo-paisagem-escrita que é ser mulher, e voltar ainda à questão: haveria um texto feminino? Um texto-fêmea? e não traria ele, se existir, marcas e moendas de uma palavra-fenda, de uma palavra-falésia? Por que é que não consigo desacreditar que não haja o texto-fêmea? que convenções, heresias e ritos se camuflam por trás das denominações culturais como ‘macho’ e ‘fêmea’? e quando chegamos no corpo: não chegamos na diferença, numa outra paisagem, numa outra escrita, então?
o que é isso de sermos mulheres-de-escrita, mulheres-que-escrevem, mulheres-textos, em novo século XXI? o que nosso dia-tempo nos dá e nos tolhe? como continuamos a amar? que linha-isca-novelo daremos ao amor? que jogo de equilíbrio se dá entre o tripé corpo-paisagem-escrita em nós mulheres urbanas de metrópole? por que é que nos unimos? e, mais, por que é que nos unimos nisso que é a palavra? que testemunho de quais paisagens ansiamos nessa tessitura a 6 mãos?
meus primeiros melindres adentram essas cavidades
____________________________________________
III
Funda escavação de vespas sobre a tessitura das achas
Funda tessitura das costas sobre a intenção das resmas
Funda evaporação e lança sobre as trincas a esmo
Fundo erro de três mortes multicerradas no mesmo
fio fenda falésia
Roberta Ferraz